segunda-feira, 30 de junho de 2008

O Vestido Branco

Na pequena vila onde vivia a família Rodrigues, Matilde, filha única do casal, era estimada por todos. O seu sorriso contagiante cativava até o Sr. Augusto, o dono da mercearia, homem de feições endurecidas onde raramente transparecia uma emoção.
Na escola, Matilde era conhecida pela sua inteligência. Tinha a tabuada na ponta da língua, sabia o nome de todos os reis de Portugal e os seus cognomes, os rios e os sistemas montanhosos e não havia verbo que não soubesse conjugar.
Fez a quarta classe e a admissão ao liceu com distinção. D. Rosa, a professora, não poupava elogios à sua aluna e aconselhou os pais a deixarem-na ir para o liceu, na cidade. “É uma pena se esta menina não continua os estudos. Com a sua inteligência até poderá vir a ser doutora, médica, quem sabe ?” …
O Sr. Américo, pai da Matilde, era operário numa fábrica de têxteis e a mãe, D. Fernanda, cuidava da casa e dum pequeno quintal que tinham nas traseiras. Conseguiam até arrecadar alguns escudos no final do mês, mas eles dariam para pôr a filha a estudar ? E depois, o liceu ficava ainda longe, a meia hora de caminho na camioneta da carreira. Sairia às oito horas da manhã e só regressaria lá pelas tantas da tarde. Eram muitas horas fora de casa, longe do olhar atento dos pais … Mil e uma preocupações vinham às suas cabeças. Mas, depois de muito pensarem e pedirem conselho aos familiares e amigos, no início do ano lectivo a Matilde foi continuar os estudos na cidade.
Os anos iam passando, a Matilde revelou-se sempre uma boa aluna, ao mesmo tempo que se ia tornando numa atraente jovem. Apesar dos conhecimentos que foi ganhando continuava a ser a menina de quem todos gostavam. Com 17 anos ela estava a acabar o sétimo ano do liceu. Preparava-se uma grande festa para os finalistas : um baile animado com um conjunto musical muito em voga na altura. As alunas andavam todas num alvoroço e a escolha da “toilette” era a conversa de todos os dias. “Vou levar ao baile um vestido comprido, de tafetá verde” dizia uma das alunas. “A minha mãe já comprou “organdi” cor-de-rosa. A costureira mostrou-me um modelo numa revista, que me fascinou” dizia a filha dum médico.
Matilde também sonhava. Quem não tem sonho aos dezassete anos ?! Imaginava-se a dançar a valsa com um vestido branco até aos pés, a saia em godés e umas alcinhas a segurarem o corpo ajustado. Fechava os olhos e sentia-se levada pelo seu par, deslizando e rodopiando à volta da sala.
Uma noite, encheu-se de coragem e falou aos pais do baile do liceu e do seu vestido branco. Eles trocaram um olhar entre si, baixaram a cabeça como que envergonhados, e o Sr. Américo, dobrando jornal que estava a ler, disse : “Ó minha querida filha, como nós gostaríamos que tivesses o teu vestido branco para ires à festa do liceu, mas as despesas com os teus estudos foram muitas e as nossas economias acabaram. Não podemos ajudar a concretizar o teu sonho, infelizmente. Nós sabemos que tu compreendes a nossa situação”. “Podes levar o vestido azul que a tua madrinha te ofereceu quando fizeste 17 anos … Não é branco nem comprido, mas ficas muito linda com ele. Vais brilhar ao pé das tuas colegas, verás !” disse a mãe.
Sim, ela tinha o vestido azul. Era um vestido de manga curta, franzido na cintura, que lhe descia até aos joelhos. Era muito bonito e até as suas amigas da vila lho tinham gabado. Mas não era o vestido branco com que sempre sonhara dançar a valsa …
Foi à festa, levou o vestido azul, dançou e encantou. Mas os seus pais, quando ela regressou a casa, não viram o sorriso nos seus lábios. Sentiram-se tristes, como tristes se tinham sentido por não lhe terem podido concretizar o seu sonho. Mas, em jeito de consolação pensaram : “Sonhos de rapariga … com o tempo vão-se desvanecendo … “
Matilde acabou os estudos e voltou para a vila. Começou por dar explicações a uns primos e pouco depois outras crianças se juntaram. Não foi para a universidade porque os parcos recursos dos pais não lho permitiram. Não foi doutora nem médica, como a professora Rosa havia imaginado, mas tinha à sua volta um grupo de crianças que precisavam da sua ajuda nas tarefas escolares. Sentia-se feliz e realizada. Amava a sua terra natal e ali queria permanecer. Ali estavam as suas raízes, a sua família, os seus amigos.
Aos 23 anos casou com o Carlos, seu amigo desde os bancos da escola. Também ele queria continuar a viver na vila e por isso licenciou-se em Farmácia e ficou a ajudar o pai, o farmacêutico da terra.
Formavam um casal feliz e respeitado por todos. Eram filhos da terra e a população sentia-se feliz por eles continuarem no seu meio.
Algum tempo depois foram abençoados com o nascimento de dois filhos : Diogo e Mariana, três anos mais nova.
Os anos passaram e também os filhos saíram da vila para continuar os estudos. Do liceu passaram para a faculdade. Diogo seguiu a profissão do pai e voltou para trabalhar na farmácia. Mariana foi a médica que talvez a mãe gostasse de ter sido. Ficou colocada no hospital duma cidade do interior. De tempos a tempos visitava a família.
Matilde sempre gostou de dançar, mas poucas vezes foi a bailes. As danças da vida foram-lhe roubando as oportunidades. Os anos foram correndo e agora, com mais tempo disponível, senta-se em frente ao televisor quando há programas de dança. Fica encantada a ver estes espectáculos ! Não é apreciadora daquelas danças muito mexidas, mas admira as coreografias. Para ela, a valsa e o tango são as suas danças preferidas. Não teve o “vestido branco comprido” com que tanto sonhou na sua juventude. Nas suas conversas e quando isso vem a propósito, lembra o seu sonho de menina, em jeito de brincadeira, mas quem estiver atento notará uma certa nostalgia, como se alguma coisa lhe tivesse sido roubada na juventude.
De criança se passa a jovem e dali é ver os anos correrem, os cabelos a embranquecer e a pele a enrugar. A idade vai avançando, mas os sonhos continuam gravados na memória, tal como o do “vestido branco” de Matilde. Sonhos que, quando somos novos, nos tiram o sono, nos deixam de olhar perdido no espaço, esquecidos de nós e do que nos rodeia. Passamos da alegria à tristeza sem qualquer explicação. Há alterações constantes do nosso estado de espírito que são tantas vezes incompreendidas pelos mais velhos.
Com o passar dos anos muitos dos nossos sonhos acabam por se irem perdendo no tempo, mas outros permanecem, como lembranças bem vivas do passado. Matilde envelheceu, mas continua a sonhar. A vida é feita de sonhos e aqueles que não abrem a porta à memória ficam parados no tempo. Os dias vão-se sucedendo numa rotina doentia, porque o amanhã será sempre igual ao dia que já passou.
“Continua a sonhar, Matilde”, porque “o sonho comanda a vida !”
Início de uma "carreira literária". Ah, ah, ah...!