Vou algumas vezes visitar uma senhora amiga. Há vários anos, depois da morte dos seus pais, foi-se isolando a pouco e pouco, fechando-se em casa, evitando o convívio com as pessoas. Tem 80 anos, sem família, e a enfrentar um problema grave de saúde. Quando era nova e durante bastante tempo e enquanto a vista lho permitiu, trabalhou para fora em ponto de “ajour”. Vive na parte antiga da cidade numa casa velha e degradada. O telhado deixa entrar a água da chuva que atravessa o sobrado do sótão e lhe cai na cama. A porta da cozinha, que dá para o quintal, tem muitos vidros partidos, deixando entrar o frio. O gás já há muito acabou na botija, há pelo menos dois anos, e não a substituiu nem deixa que o façam (agora também é um perigo porque as borrachas já devem ter passado há muito o prazo de validade). Há alguns anos quiseram instalar-lhe um telefone em casa , para , em caso de necessidade, pedir ajuda. Não deixou. “Nunca tive telefone e agora também não preciso” foi a resposta.
Deixou de cozinhar mas conseguiu-se que o almoço lhe fosse servido por uma instituição de solidariedade da nossa cidade a troco duma pequena importância, pois recebe a reforma mínima. As condições higiénicas em que vive são deploráveis, mas não deixa que a ajudem a limpar a casa. A máquina de lavar a roupa funciona, mas não a utiliza …Por iniciativa própria não leva o lixo para o contentor, só com a imposição duma amiga que a ajuda nessa tarefa. Só sai de casa de manhã bem cedo para ir comprar o pão e uma vez por mês para ir aos Correios receber a pequena reforma e pagar a água e a luz.
É uma mulher que vive na solidão a que se votou e que não quer ser ajudada … Num dia frio de Inverno recusou a oferta dum termo com água quente para fazer um chá e sentir-se mais quentinha. Mas se levamos um bolo ou um doce aceita, fica contente. Vá lá !
Entretém-se a ver alguns programas da Sic mas não muda de canal com receio de mexer no comando e avariar o sistema. É bom que, pelo menos, continue a procurar esta distracção, a única que tem !
Alerto-a muitas vezes para ter cuidado porque pode ter algum acidente em casa e ali ficar sem assistência, pois os vizinhos podem não dar pela sua falta. Responde-me , quase a chorar, “O Senhor vai ajudar-me, o Senhor não me desampara…” Respondo-lhe “Deus ajuda, mas nós temos de fazer a nossa parte”.
O ano passado fui falar com o Delegado de Saúde para pedir, se possível, a sua intervenção e saber o que poderia ser feito. Ele já conhecia a situação porque, meses antes, duas técnicas de serviço social a tinham visitado. É um homem muito afável, recebeu-me bem. Depois de termos analisado toda a situação e eu lhe falar da necessidade urgente da senhora sair daquela casa, que não oferece o mínimo de condições, da possibilidade de ela ir para um lar, onde pudesse ser bem tratada, ter uma cama limpa para se deitar, refeições quentes, enfim, tudo aquilo a que o ser humano tem direito, ele disse-me, mais ou menos estas palavras : “Enquanto ela estiver lúcida, saber aquilo que quer, ninguém pode tirá-la de casa. Só com um mandato da justiça, que só é passado se ela estiver transtornada da cabeça , sem capacidade para estar sozinha”.
A senhoria da casa onde vive já lhe propôs ir habitar uma casa mais pequena, quase ao lado, que tem boas condições, só que, disse ela :”A mobília que eu tenho não cabe lá e eu não me quero desfazer dela”. Houve também a possibilidade de ir passar 15 dias a um lar, longe da Figueira da Foz e dirigido por pessoas suas conhecidas , apenas para ver se gostaria de lá ficar, mas, claro, não quis ir…
Que mais se pode fazer quando uma pessoa não deixa ser ajudada?!
“Muitas pessoas vivem nestas condições, e pior ainda, na cidade”, foi-me dito.
Será que estas pessoas estão no pleno gozo das suas faculdades mentais, têm elas a perfeita lucidez das suas incapacidades para levarem uma vida mais ou menos normal ? Porque não compreendem elas que precisam de ajuda? Eu sei que a minha amiga não se sente feliz na solidão em que vive, mas também é notório que cada vez se torna mais difícil ela sentir que tem necessidade de aceitar a ajuda que todos nós lhe queremos prestar.
Queremos ajudar, mas não sabemos como…
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